Stieler Handatlas, 1906

Hoje trago-lhe aquele que é considerado o melhor atlas alemão – e, talvez, mundial – das últimas três décadas do século XIX e da primeira metade do século XX. Trata-se do Stielers Handatlas, de seu nome oficial: Hand-Atlas über alle Theile der Erde und über das Weltgebäude (em português será qualquer coisa como "Atlas prático de todas as partes do mundo e do universo"), da autoria de Adolf Stieler (1775-1836). Publicado pela primeira vez em 1816, o atlas contou com dez edições, até 1945, cada uma com melhorias e atualizações.

Mapa-múndi, projeção de Mercator (carta n.º 4), Stielers Handatlas, 9.ª ed., 2.ª impressão corrigida, 1906.

Foi concebido numa época em que a cartografia alemã se impôs em todo o mundo como a mais inovadora e rigorosa. Mas nem sempre foi assim. Vamos recuar uns séculos...

A Idade de Ouro Neerlandesa

Como sabemos, as grandes navegações – nas quais Portugal desempenhou um papel pioneiro – desencadearam um desenvolvimento sem paralelo no domínio da cartografia. No entanto, foi a vulgarização dos métodos de impressão que tornou os mapas e os atlas progressivamente mais acessíveis ao grande público. E tal não ocorreu em Portugal – que, no final do século XVI, estava já a viver um período de decadência – mas sim nos Países Baixos.

Já lhe falei anteriormente, amigo(a) leitor(a), que o primeiro atlas, enquanto livro publicado em edição específica, com mapas do mesmo formato, produzidos especificamente para o efeito, foi o Theatrum Orbis Terrarum de Abraham Ortelius (1527-1598), publicado em 1570 em Antuérpia. Mas, como também já vimos, o primeiro a usar a palavra Atlas no título foi o Atlas Sive Cosmographicae Meditationes de Fabrica Mundi et Fabricati Figura, publicado em 1595, logo após a morte do seu autor, o célebre Gerhard Mercator (1512-1594).

Em 1658, Joan Blaeu (1598-1673) publicou o Atlas Maior, com 594 mapas. Custando entre 350 – exemplar não colorido – e 450 florins neerlandeses – com mapas e ilustrações pintados à mão – tornou-se o livro mais caro do século XVII. Foi um atlas esteticamente tão encantador que, ainda hoje, continua a atrair muita atenção do público. Tal terá motivado a editora alemã Taschen a reeditá-lo recentemente, tendo por base o exemplar conservado na Biblioteca Nacional da Áustria.

Mas, entre os atlas holandeses fora de série deste período, não posso deixar de referir o chamado Atlas Klenche, o colossal atlas que, em 1660, o mercador holandês Johannes Klencke ofereceu ao rei Carlos II de Inglaterra que mede 1,76 x 2,31 metros, hoje conservado na British Library, em Londres. Já falei sobre ele, ilustrando com uma fotografia, aqui.

No entanto, o fim do chamado Século de Ouro dos Países Baixos, comummente fixado em 1672, marcou também o fim da liderança neerlandesa no campo da cartografia. Embora vários dos atlas referidos acima tenham continuado a ser republicados, deixaram, no entanto, de merecer atualizações regulares.

Europa (carta n.º 7), Stielers Handatlas, 9.ª ed., 2.ª impressão corrigida, 1906. De notar que a Europa Central e do Leste estava ainda dominada por vastos impérios: Império Alemão, Império Austro-Húngaro, Império Russo e Império Otomano.

A ciência e os atlas franceses

A liderança foi, então, assumida pela França que se colocou na vanguarda da ciência e da arte. Logo em 1658 foram publicadas as Cartes générales de toutes les parties du monde, por Nicolas Sanson (1600-1667), ultrapassando os atlas holandeses em termos de atualização e precisão. Na verdade, o recurso à triangulação geodésica melhorou muitíssimo a precisão dos mapas produzidos em França. Os cartógrafos franceses passaram a basear os seus mapas nos dados mais recentes das investigações levadas a cabo pela Académie des Sciences e confirmados por astrónomos.

O cartógrafo Jean-Baptiste Bourguignon d'Anville (1697-1782) – autor do Atlas Général (1740) – não usou apenas os dados geodésicos mais recentes, como também incorporou informações recolhidas nos relatórios de vários exploradores da época.

Em França, o Iluminismo deu origem, também, ao surgimento de atlas escolares e de bolso bem fundamentados, de que é exemplo o Atlas de géographie physique, politique et historique, de Augustin Grosselin (1800-1878), Alexandre Delamarche (1815-1884) que começou a ser publicado em 1820 e de que já tivemos oportunidade de abordar aqui.

No entanto, ao longo do século XIX, também a cartografia francesa foi perdendo terreno, desta feita a favor da alemã.

A ascensão da cartografia germânica

Como já referi, ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, a cartografia alemã ocupou uma posição dominante com obras insuperáveis. Muitas das editoras concentravam-se em Leipzig e na região da Turíngia, nomeadamente nas cidades de Weimar e Gota (em alemão, Gotha).

Estados turíngios (carta n.º 13, excerto), Stielers Handatlas, 9.ª ed., 2.ª impressão corrigida, 1906. De notar a cidade de Gota, ao centro.

Já agora, e como sei que o(a) prezado(a) leitor(a) gosta destas curiosidades, deixe-me contar-lhe, a talho de foice, que a cidade de Gota tem, por portas travessas, uma ligação a Portugal. Em 1836, a rainha D. Maria II (1819-1853) contraiu matrimónio com um príncipe alemão: Fernando de Saxe-Coburgo-Gota (1816-1885). Saxe-Coburgo-Gota foi uma casa nobre germânica que chegou a ser a casa reinante de países como a Bélgica e o Reino Unido. Esta união matrimonial, segundo alguns autores, terá mesmo dado origem a um novo ramo dinástico em Portugal: a Casa de Bragança-Saxe-Coburgo-Gota. A esta casa reinante teriam pertencido os monarcas D. Pedro V, D. Luís, D. Carlos e D. Manuel II. No entanto, a maioria dos historiadores portugueses não reconhece a existência deste ramo, já que, em Portugal, as mulheres sempre puderam ser herdeiras e ascender ao trono. Assim, seguindo as leis hereditárias tradicionais portuguesas, considera-se que a legitimidade dinástica dos Bragança passou para D. Maria II e para os seus herdeiros, sendo que a Casa de Bragança original terá continuado a existir.

A editora Justus Perthes

Mas voltando ao nosso assunto, foi precisamente na tal cidade de Gota que se fixou a editora Justus Perthes, fundada em 1785 por Johann Georg Justus Perthes (1749-1816), filho de um médico da corte de Rudolstadt, capital do pequeno principado de Schwarzburg-Rudolstadt, no período anterior à unificação alemã que só foi empreendida em 1871, por Otto von Bismark.

Um dos produtos que trouxeram sucesso internacional à editora foi a produção e comercialização do Gothaischer Hofkalender ou Almanach de Gotha. Tratava-se de um almanaque publicado todos os anos em alemão e francês que listava as casas reinantes da Europa, as principais famílias nobres, o corpo diplomático e os mais altos funcionários dos diversos Estados. Publicou-se ininterruptamente entre 1763 e 1944, tornando-se uma obra de referência por toda a Europa. No final da Segunda Guerra Mundial, a cidade de Gota foi tomada pelo Exército Vermelho e os arquivos da editora foram completamente destruídos pelas tropas soviéticas.

Ora, para além deste almanaque, outro projeto igualmente importante na projeção da editora Justus Perthes foi, precisamente, o atlas de Stieler.

Alpes (carta n.º 144, excerto), Stielers Handatlas, 9.ª ed., 2.ª impressão corrigida, 1906.

O cartógrafo Adolf Stieler

Filho de um vereador municipal de Gota, Adolf Stieler (1775-1836) fez os estudos secundários no Gymnasium Ernestinum Gotha e depois estudou direito em Jena e Gotinga (em alemão, Göttingen). Em 1796, foi contratado como funcionário da corte de Gota, desenvolvendo os seus interesses de geografia e cartografia, desenhando alguns mapas, nomeadamente diversas cartas topográficas militares.

Em 1812, Stieler contactou Christian Gottlieb Reichard (1758-1837) para, em conjunto, projetarem um novo atlas. Pretendiam fazer um atlas de formato conveniente, que fosse completo, rigoroso e de fácil consulta, com mapas de aspeto uniforme, com uma boa impressão em papel de qualidade e que pudesse ser comercializado a um preço que estivesse ao alcance do grande público.

O resultado foi apresentado ao editor Perthes em 1815, sendo que a primeira edição do Stielers Handatlas começou a ver a luz do dia no ano seguinte, em 1816, poucos meses antes da morte do fundador da editora Justus Perthes.

Como era comum na época, cada edição foi publicada em fascículos, com suplementos publicados posteriormente. A primeira edição, com 50 cartas, foi publicada em quatro fascículos, entre 1816 e 1823, e complementada por mais oito suplementos, publicados até 1835, estendendo o atlas a 77 cartas.

Adolf Stieler não chegou a assistir a mais edições do seu atlas. Faleceu logo a seguir, em 1836, com 61 anos. No entanto, a sua obra seria continuada e permanentemente melhorada por outros cartógrafos.

América do Sul (carta n. 100, excerto), Stielers Handatlas, 9.ª ed., 2.ª impressão corrigida, 1906. De notar que o mapa assinala as localidades do Sul do Brasil com comunidades alemãs (Deutsche Gemeinde).

O Stielers Handatlas depois de Stieler

Após a morte de Stieler, Johann Friedrich von Stülpnagel (1786-1865) continuou o trabalho com a segunda (1845-1847) e terceira edições (1852-1854). Cada uma delas com 83 cartas. A quarta edição apareceu em 1862-1864 e a quinta em 1866-1868, ambas com 84 cartas.

Mas foi na sexta edição (1871-1875, 90 cartas), dirigida por August Petermann (1822-1878), Hermann Berghaus (1828-1890) e Carl Vogel (1828-1897), que o atlas alcançou uma altíssima qualidade científica, com representações do relevo insuperáveis, trazendo ao Stielers Handatlas fama internacional.

A sétima edição foi publicada em 1879-1882 e a oitava em 1888-1891 (com 95 cartas cada), ambos sob a direção de Hermann Berghaus, Carl Vogel e Hermann Habenicht (1844–1917).

Embora os processos de impressão já tivessem mudado em grande parte para a litografia, vários mapas do Stielers Handatlas continuaram a ser produzidos com gravuras em impressoras manuais até a década de 1890.

A nona edição (1901-1905), dirigida por Habenicht chegou às 100 cartas – o dobro da primeira edição – e foi a primeira a ser impressa em cilindros, tornando-a acessível a um público mais amplo, pela redução dos custos de produção. É também considerada a melhor edição, na qual todas as cartas atingiram o patamar mais elevado de qualidade. Dezasseis cartas desta edição foram traduzidas para inglês, convertidas para o sistema britânico de medidas e integradas da 11.ª edição da célebre Encyclopædia Britannica (1910-1911). Num artigo publicado em 1902, o geógrafo e cartógrafo britânico John George Bartholomew (1860–1920) – de quem falaremos, um dia destes  escreveu: “Nenhuma outra entidade privada atraiu tantos geógrafos e cartógrafos ilustres, nem deu contributos tão grandes para a ciência geográfica através dos seus trabalhos de alta qualidade como a Justus Perthes de Gota.” No mesmo artigo, elogia o Stielers Handatlas, que nenhum atlas britânico conseguia, então, superar.

Hermann Haack (1872–1966) editou a décima edição – também conhecida como "edição centenária" – publicada entre 1920 e 1925. Além das 108 cartas, o atlas continha uma lista de topónimos com 320 mil entradas, sendo considerado o atlas mais completo da era moderna.

Em 1939, 1942 e no início de 1945, houve ainda três "edições de guerra", na prática modificações da "edição centenária", publicadas por Haack, mostrando a reorganização territorial que o Terceiro Reich procurava impor na Europa.

Versões em inglês da nona e décima edições foram publicadas como Stieler’s Atlas of Modern Geography e também em francês, italiano e espanhol, com títulos semelhantes. Entre 1934 e 1940, a editora preparou uma edição internacional que nunca foi acabada. Devido à Segunda Guerra Mundial, apenas 84 das 114 cartas previstas foram executadas.

África (carta n.º 70, excerto), Stielers Handatlas, 9.ª ed., 2.ª impressão corrigida, 1906.

O meu Stielers Handatlas

O meu exemplar do Stielers Handatlas é a segunda impressão corrigida da 9.ª edição e foi publicado em 1906. Comprei-o há coisa de 30 anos, na saudosa livraria Sousa & Almeida, ao cimo da rua da Fábrica. Na altura, foi-me dito que o atlas pertencera a um navio alemão apreendido pelo Estado português quando estava fundeado no Douro, nas vésperas da entrada de Portugal na Primeira Guerra Mundial. Nunca soube se isso tinha sido, de facto, assim ou se só me contaram uma história curiosa para eu comprar o atlas. Mas, se for verdadeira, quer dizer que o meu Stielers Handatlas deve ter pertencido a algum membro da tripulação ou a um passageiro do navio Vesta. A verdade é que, em 1916, o Estado apreendeu um total de 72 navios das marinhas mercantes alemã e austríaca, espalhados por todos os territórios portugueses, incluindo Angola e Moçambique. Mas no Porto só estava um, o Vesta, que, depois de confiscado, foi rebatizado como Foz do Douro.

Noroeste da penísula Ibérica (carta n.º 32, excerto), Stielers Handatlas, 9.ª ed., 2.ª impressão corrigida, 1906.

Independentemente da sua origem, o Stielers Handatlas tem um lugar especial na minha biblioteca e, para além do seu valor histórico, é também um livro bastante atraente, que folheio com agrado. Caríssimo(a) companheiro(a) destas viagens pelo mundo dos atlas, voltarei brevemente com mais uma obra. Fique bem!

Ficha técnica

  • Título: Hand-Atlas über alle Theile der Erde und über das Weltgebäud
  • Autores: Adolf Stieler (1775-1836), Hermann Habenicht (1844–1917).
  • Data: 1906
  • Idioma: alemão
  • Local: Gota
  • Editor: Justus Perthes
  • Páginas: 100 cartas, 237 pp. de índices toponímicos
  • Dimensões: 410 x 265 x 50 mm

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