Atlas de géographie physique, politique et historique, 1886

Atlas de géographie, 1886
Frontispício do Atlas de géographie physique, politique et historique, Grosselin-Delamarche, 1886

O atlas que lhe trago hoje, caro(a) leitor(a), é francês e tem o seguinte título completo: Atlas de géographie physique, politique et historique adopté par l'université, à l'usage des lycées et des maisons d'éducation pour suivre les cours de Géographie et d'Histoire par Grosselin-Delamarche. Foi publicado em Paris pela Librairie Géographique de Émile Bertaux, em 1886. Resultou dos esforços conjuntos de três pessoas: Grosselin, Delamarche e Bertaux. Os dois primeiros foram os autores e o último o editor.

Na verdade, estamos perante uma nova edição de um atlas publicado pela primeira vez em 1820. O seu autor original foi o engenheiro mecânico Félix Delamarche, proprietário da Maison Delamarche, empresa de cartografia fundada pelo seu pai, Charles-François Delamarche (1740-1817), um dos mais importantes geógrafos e cartógrafos franceses da segunda metade do século XVIII. Depois de Félix, o negócio de atlas, mapas e globos foi continuado pelo seu filho, Alexandre Delamarche (1815-1884).

Entretanto, em 1846, o cargo de gerente da casa foi assumido por Augustin Grosselin (1800-1878) e foi este que, em 1875, convidou o astrónomo e editor Émile Bertaux (1840-1903) a passar a editar os seus mapas e atlas. Entre estes estava o nosso Atlas de géographie, do qual foram publicadas múltiplas edições, sucessivamente atualizadas e melhoradas. Com o falecimento de Augustin Grosselin, em 1878, e de Alexandre Delamarche, em 1884, recaiu sobre Émile Bertaux a responsabilidade de continuar a lançar novas edições do atlas, inclusive incorporando alguns mapas de sua lavra, mas mantendo sempre como autores do atlas Grosselin-Delamarche.

25 rue Serpente, 6ème arrondissement, Paris
O n.º 25 da rue Serpente, em Paris, onde, em 1886, funcionava a Librairie Géographique de Émile Bertaux (fonte)

Na verdade, não sei quantas edições saíram deste atlas. Na Biblioteca Nacional de Portugal há referência a várias (1858, 1864, 1872, 1873, 1875, 1876, 1877, 1894 e 1897), mas, estranhamente, não à nossa, que é de 1886. Estou em crer que terá havido uma dúzia de edições deste atlas. Ou talvez mais...

Os liceus

Logo no título completo da obra se especifica que este é um atlas de cariz escolar, nomeadamente para uso nos liceus (...à l'usage des lycées) nas disciplinas de Geografia e História. Criados em 1802 por Napoleão Bonaparte para formar “a elite da nação”, os liceus ministravam o ensino secundário laico em letras e ciências. Foram concebidos como sendo escolas inteiramente financiadas pelo Estado, devendo existir, pelo menos, um liceu por cada departamento. Para ser admitido num liceu, o aluno tinha de obter aprovação num exigente exame de aferição de conhecimentos. A sua frequência estava sujeita ao pagamento de propinas, cujo valor dependia dos rendimentos dos pais. Os liceus franceses só se tornaram inteiramente gratuitos em 1930.

Durante grande parte do século XIX, apenas houve liceus masculinos. O primeiro liceu feminino abriu em 1881 em Montpellier, mas em 1896 já havia 36, espalhados pelo território francês. O seu número continuou a crescer, até que, em meados do século XX, os liceus estatais se tornaram mistos. 

O modelo napoleónico dos liceus teve um impacto profundo em numerosos países, incluindo em Portugal. Quando, em 1836, o ministro Passos Manuel criou o ensino liceal no nosso país – decretando a abertura de um liceu em cada capital de distrito –, foi decalcar o modelo francês.

Atlas de géographie, Paris, 1886
Aspeto do Atlas de géographie depois de encadernado.

Abrindo o nosso atlas, vemos que, após uma breve secção sobre cosmografia com quatro páginas de texto com figuras e um “planisfério celeste”, as restantes cartas estão agrupadas em três conjuntos: Geografia Antiga, Geografia da Idade Média e Geografia Moderna. Comprei este atlas online há alguns anos. A capa estava desfeita, pelo que o mandei encadernar (imagem acima) no António de Sousa Oliveira, com porta aberta no n.º 107 da rua dos Mártires da Liberdade, no Porto.

Mas quando comecei a folheá-lo, ao ver os números dos mapas no canto superior direito, fiquei muito desapontado ao verificar que faltavam mapas! Por exemplo, do mapa 40 passava-se logo para o 65... E este não era caso único. Conferi tudo e apurei que, no total, teriam sido retirados deste atlas um total de 31 mapas!

Contracapa do Atlas de géographie, 1886
Contracapa original, com a descrição das diversas versões publicadas do Atlas de géographie.

Mas estava enganado. Quando entendi a mecânica da coisa, percebi que, afinal, não faltava nada.

A verdade é que tinham sido publicados, não um, mas sete atlas! Ou, talvez melhor, sete versões do mesmo atlas. Explico: o maior de todos era o Atlas universel que tinha 110 cartas; o n.º 2 era o “nosso” atlas que, pelos vistos, não era mais do que um segmento do anterior, apenas com 79 cartas; o n.º 3 incluía a apenas as cartas referentes à geografia antiga e moderna (56 cartas); o n.º 4 apenas geografia moderna (35 cartas) e por aí fora... O último, chamado Atlas de géographie élémentaire, limitava-se a 19 cartas que seriam, seguramente, apenas as mais gerais (imagem acima). Ou seja, só o atlas universal tinha a coleção completa de mapas, sendo os restantes apenas segmentos do primeiro. No entanto, mantinha-se a numeração das cartas em todos os atlas. E havia uma nota que informava que estavam à venda exemplares avulso de todos os mapas, pelo que se poderia compor um atlas, verdadeiramente, à vontade do freguês. É aquilo que eu já tinha referido aqui, a propósito dos atlas antigos.

Escudo das Guianas ou planalto das Guianas, 1886
Representação com hachuras ou tramas de relevo do escudo das Guianas ou planalto das Guianas que se prolonga através da área de fronteira do Brasil com a Venezuela e as Guianas e do qual faz parte o pico da Neblina, o ponto mais alto do Brasil, que, na época, ainda não era conhecido (carta n.º 113).

As hachuras

As cartas publicadas neste atlas têm algumas características cartográficas muito próprias da época, nomeadamente o método de representação do relevo. Usam tramas de relevo ou hachuras, um método criado pelo topógrafo austríaco Johann Georg Lehmann em 1799 e que se popularizou. São pequenas linhas dispostas em filas e traçadas no sentido de maior declive do terreno. As pendentes mais pronunciadas estão representadas por traços mais grossos e curtos, enquanto as pendentes suaves estão representadas por traços mais finos, longos e espaçados. As pendentes muito suaves e as áreas planas, como os topos das mesetas, são deixadas em branco (imagem acima). Este método foi muito usado ao longo do todo o século XIX e inícios do seguinte. Foi o primeiro processo de representação da altimetria na cartografia de base. Caiu em desuso devido à pouca precisão do processo.

Carte politique de l'Europe, 1884
Carta política da Europa em 1884 (carta n.º 80).

A carta política da Europa, datada de 1884, mostra-nos um continente muito diferente do atual (imagem acima). A Irlanda integrava o Reino Unido, a Islândia era possessão dinamarquesa, a Suécia e a Noruega estavam unidas sob um mesmo monarca, enquanto o centro e o leste da Europa eram dominados por vastos impérios: o Império Alemão, o Império Austro-Húngaro, o Império Russo e o Império Otomano. Sendo que, os dois últimos, se estendiam para a Ásia.

O Império Otomano sofria uma regressão progressiva na Europa, à medida que territórios por si dominados se iam tornando independentes: a Grécia, primeiro, depois a Sérvia, a Roménia e Montenegro. A Bulgária e a Albânia só alcançariam a independência no início do século XX, pelo que aqui aparecem integradas numa área intitulada "Turquia da Europa" (imagem abaixo).

Turquie d'Europa, 1886
A "Turquia da Europa" ou o que sobrava em 1886 do, outrora, vasto Império Otomano no continente europeu (carta n.º 102)

Sendo este um atlas escolar francês, não será de admirar que dê um especial destaque às questões francesas: a Gália romana, o império carolíngio, a França de Francisco I, de Luís XIV, a França em 1789, as campanhas napoleónicas, as possessões em África, na Ásia, na América e na Oceania, a região de Paris (imagem abaixo), etc.

A propósito de Paris, estou certo de que a primeira imagem que vem à cabeça do(a) caríssimo(a) leitor(a) quando se fala na Cidade Luz é a Torre Eiffel. Estou certo? Pois bem, por difícil que seja imaginar, a verdade é que, quando este Atlas de géographie saiu do prelo, la dame de fer ainda não existia. Só começou a ser construída em 1887, sendo inaugurada dois anos depois, como a peça central da Exposição Universal de 1889.

Environs de Paris, 1886
Arredores de Paris (excerto da carta n.º 87)

Conferência de Berlim

Pouco antes da publicação deste atlas, mais concretamente entre 15 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885, representantes de treze nações europeias (incluindo a Rússia), do Império Otomano e dos Estados Unidos reuniram-se em Berlim com o objetivo de "regulamentar a liberdade do comércio nas bacias do Congo e do Níger, assim como novas ocupações de territórios sobre a costa ocidental da África".

Mas, ao contrário do que o(a) prezado(a) leitor(a) poderá supor, não foi logo ali em Berlim que, a régua e esquadro, se dividiu a África entre as potências europeias. Esta conferência ajudou, acima de tudo, a definir esferas de influência, abrindo a porta à subsequente assinatura de tratados entre os diversos países europeus para definição, em pormenor, das fronteiras entre os territórios colonizados ou a colonizar por cada um deles. E, neste processo, os estados africanos existentes foram quase completamente ignorados. De Marrocos ao reino do Congo, do estado madista do Sudão ao reino Zulu, do sultanado de Zanzibar aos territórios bóeres (ou seja, dominados por brancos) do Estado Livre de Orange e do Transval, um após outro, todos foram invadidos, retalhados e anexados por diferentes potências europeias. E todo este processo foi tão rápido e generalizado que se passou de 10 porcento de território africano sobre domínio formal europeu em 1870 para 90 porcento em 1914!

Canal de Moçambique, 1886
Canal de Moçambique. De notar as hachuras usadas para representar o relevo, nomeadamente na ilha de Madagáscar (excerto da carta n.º 107).

A jangada de pedra

Terminamos este périplo pelo Atlas de géographie de 1886 com o mapa da Península Ibérica. Curiosamente, este mapa não é da autoria dos autores do atlas, mas de Edouard Desbuissons (1827-1908) que foi geógrafo do ministério dos Negócios Estrangeiros francês e autor de vários mapas de África.

Observando como o território português foi aqui representando, surpreende o facto de o país aparecer dividido nas seis províncias tradicionais: Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Alentejo e Algarve. Trata-se de uma divisão administrativa que remonta ao século XV, mas que não sobreviveu à reforma administrativa de 1832.

Também obsoletas são as medidas usadas na escala gráfica deste mapa. Em boa verdade, este mapa tem quatro escalas gráficas: em quilómetros, em léguas francesas (léguas de 25 ao grau), em léguas espanholas (léguas de 26,6 ao grau) e em léguas portuguesas (léguas de 18 ao grau). Trocando por miúdos, isto quer dizer que uma légua francesa era equivalente a 4.444,44 metros, a espanhola a 4.728,88 metros e a portuguesa a 6.172,84 metros.

Península Ibérica, 1886
Península Ibérica (carta n.º 100)

Como o(a) estimado(a) leitor(a) bem sabe, a légua era uma unidade de medida de itinerários usada em vários países – incluindo Portugal – antes da introdução do Sistema Métrico Decimal. No entanto, uma légua assumia diferentes dimensões conforme os países, às vezes, variando até dentro do mesmo país. Em Portugal, foi no reinado de D. Maria II que o Sistema Métrico foi adotado, mais precisamente em 1852, sendo que em 1860 as medidas tradicionais foram abolidas e consideradas ilegais. Em Espanha, a adoção do sistema é até anterior, data de 1849, se bem que o seu uso só se tornou obrigatório a partir de 1880. Seja como for, aquando da publicação deste atlas, não só as divisões administrativas de Portugal já eram outras há mais de 50 anos, como o Sistema Métrico Decimal já se generalizara.

São dois pontos que, por um lado, não abonam nada a favor do rigor e da atualização deste atlas, mas que, paralelamente, atestam a pouca relevância dada aos reinos peninsulares a partir da Cidade Luz. Posso estar a ser vítima da síndrome de Calimero, mas não creio que um atlas francês daquela época publicasse informações tão obsoletas se os países em questão fossem, por exemplo, o Reino Unido ou a Alemanha...

E, de momento, é tudo. Termino agradecendo a atenção com que o(a) paciente leitor(a) leu este texto. Voltarei em breve com mais um atlas da minha coleção. Até lá!

Ficha técnica

  • Título: Atlas de géographie physique, politique et historique adopté par l'université, à l'usage des lycées et des maisons d'éducation pour suivre les cours de Géographie et d'Histoire
  • Autor: Augustin Grosselin (1800-1878), Alexandre Delamarche (1815-1884)
  • Data: 1886
  • Edição: "nouvelle édition"
  • Idioma: francês
  • Local: Paris
  • Editor: Émile Bertaux (1840-1903)
  • Páginas: 6 pp. de texto, 79 mapas
  • Dimensões: 347 x 258 x 26 mm

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