João Soares, Novo Atlas Escolar Português, 1925

Hoje trago-lhe, pela primeira vez, um atlas português. Chama-se Novo atlas escolar português e é da autoria de João Soares (1878-1970), pai de Mário Soares (1924-2017) que, entre outros cargos importantes, foi presidente da República Portuguesa entre 1986 e 1996.

Novo atlas escolar português foi um caso raro de sucesso editorial em Portugal. Foi publicado pela primeira vez em 1925 (imagem acima) e contou com onze edições consecutivas – entre as décadas de 20 e 70 do século XX –, marcando sucessivas gerações de estudantes portugueses.

Numa época em que o conhecimento da geografia de Portugal e das colónias era considerado da maior importância na formação dos futuros quadros do país, os atlas escolares afirmavam-se como um importante complemento aos manuais regulares das diversas disciplinas, especialmente da geografia, da história e da economia.

Há que ter em atenção que, à época, quem estudava no liceu (equivalente aos atuais 3.º ciclo do ensino básico e ensino secundário) era apenas uma reduzida percentagem de uma população que, em termos gerais, sofria de uma fraca literacia. Em 1950, no meio do século XX, a taxa de analfabetismo total da população portuguesa ainda superava escandalosamente os 40% (fonte). Mas se hoje (2024) podemos considerar que o analfabetismo foi praticamente erradicado, como sabemos, a abrangência do ensino médio entre nós ainda deixa a desejar. Dados de 2021 indicavam que os adultos portugueses sem ensino secundário eram mais do dobro da média europeia (fonte).

Planisfério (carta 17-18), Novo atlas escolar português, 6.ª ed., 1956.

Já aqui lhe trouxe, caro(a) leitor(a), um atlas escolar francês de 1886, o Atlas de géographie physique, politique et historique e muitos outros houve editados em diversos países. 

Na Alemanha, por exemplo, a cartografia de atlas escolares remonta ao início do século XVIII, com atlas como o Kleiner Atlas Scholasticus (1710) e o Atlas Portatilis (1717), ambos publicados em Nuremberga. Este último foi tão popular que mereceu sucessivas reedições ao longo de todo o século XVIII. Mas o mais famoso atlas escolar alemão foi o Schul-Atlas über alle Theile der Erde, nach dem neuesten Zustand (Atlas escolar de todas as partes do mundo, de acordo com a versão mais recente), da autoria do geógrafo e cartógrafo Adolf Stieler e publicado pela editora Justus Perthes, de Gotha, em 1821. E, depois deste, muitos outros lhe sucederam. A profusão de atlas escolares foi, também, uma constante no Reino Unido, nos Estados Unidos e em muitos outros países.

Atlas escolares em Portugal

Em Portugal, muitos anos antes de João Soares, há a registar o trabalho pioneiro de Bernardino Barros Gomes, intitulado Cartas elementares de Portugal para uso das escolas, de 1878. Era um livrinho com apenas cinco mapas de Portugal e 29 páginas de texto explicativo, destinado ao ensino primário. Em 1897, pela mão da Direção-Geral da Instrução Pública, foi publicado o Atlas escolar portuguez de Ricardo Lüddecke, "para uso dos lyceus e institutos do ensino secundario", respeitando a grafia da época. Este atlas, que teve uma segunda edição em 1902, foi uma versão traduzida e adaptada à realidade portuguesa do alemão Deutscher Schulatlas, do mesmo autor, publicado pela, já referida, editora Justus Perthes, de Gotha. Em 1920, as livrarias Aillaud e Bertrand lançaram o Novo atlas universal de geografia e história, de J. Monteiro e L. Schwalbach Lucci. Apesar da ausência da palavra escolar no título, o prefácio esclarecia que este era um atlas "especialmente destinado aos estudantes do ensino secundário e superior". E não devo estar a errar muito se disser que, até João Soares, nada mais foi publicado neste nosso jardim à beira-mar plantado, no que a atlas escolares diz respeito...

O autor

Nascido em Leiria em 1878, João Lopes Soares formou-se em teologia pelo Seminário de Coimbra. Ordenado presbítero, desempenhou funções de capelão militar, mas, tendo fixando residência em Lisboa, envolveu-se em ações de agitação republicada, acabando na prisão. A implantação da República trouxe-lhe a liberdade e a nomeação para professor no Instituto Militar dos Pupilos do Exército. Desempenhou, também, funções de governador civil e de deputado, sendo nomeado ministro das Colónias, em 1919.

Com a instauração da ditadura em 1926, tomou parte em diversas movimentações oposicionistas, exilando-se em Espanha. Alegando ter recebido as ordens eclesiásticas contrariamente à sua vontade, João Soares conseguiu a nulidade da sua ordenação de presbítero, em 1927, contraindo matrimónio em 1934. Prosseguindo a sua vocação pedagógica, dois anos depois, fundou o Colégio Moderno, em Lisboa, do qual foi diretor durante largas décadas. Paralelamente, desde a década de 1920, João Soares foi autor de diversos manuais escolares – alguns deles adotados como manuais oficiais pelo regime salazarista – e, é claro, do Novo atlas escolar português.

Imagens, Novo atlas escolar português, 6.ª ed., 1956.

O atlas

A publicação do Novo atlas escolar português foi preparada numa viagem de vinte dias que João Soares empreendeu a Itália, em maio de 1924. Aí teve diversas reuniões no Instituto Geográfico de Agostini, em Novara, das quais resultou a preparação de um atlas adaptado à realidade escolar portuguesa. No prefácio do Novo atlas escolar português, saído do prelo no ano seguinte, João Soares refere que "a falta de um atlas português, moderno e devidamente atualizado, é uma das maiores dificuldades com que professores e alunos têm de defrontar-se", já que "é inteiramente impossível dirigir um curso de geografia ou de história, sem o auxílio de uma coleção de mapas que evite a queda do ensino num verbalismo abstrato e estéril".

João Soares queixa-se de que "os atlas estrangeiros, de preços verdadeiramente inacessíveis, são deficientes e mesmo errados na parte referente a Portugal e seus vastíssimos domínios e não podem, de modo algum, satisfazer as exigências dos programas oficiais". Destaca que, no seu atlas, "as condições e características económicas do solo da metrópole encontram-se larga e rigorosamente representadas, obedecendo ao critério de que o estudo da geografia económica deve ser a base e o corpo central do conhecimento do nosso país". Por outro lado, "também a representação dos nossos domínios ultramarinos nos mereceu especial cuidado, sobretudo as ricas colónias de Angola e Moçambique".

Mapas de Moçambique, Índia portuguesa, Macau e Timor (cartas 63 e 64), Novo atlas escolar português, 6.ª ed., 1956.

Após a primeira edição, saída em abril de 1925, a segunda viu a luz do dia em dezembro de 1934. Passada a Segunda Guerra Mundial, a terceira edição data de 1949; a quarta, de 1951; a quinta, de 1954; a sexta, de 1956; a sétima, de 1959; a oitava, de 1960; a nona, de 1963; a décima, de 1965 e, por último, a décima primeira, de 1971, já após o falecimento do autor. Esta obra contou, também, com uma edição para o Brasil, com prefácio de João de Barros.

Em cada nova edição eram atualizados os dados estatísticos e os mapas, refletindo as alterações administrativas e políticas que o mundo ia sofrendo ao longo dos quase cinquenta anos em que o atlas foi publicado.

Na minha biblioteca, tenho exemplares da primeira, da sexta e da décima primeira edições. Este último, comprei-o novo em 1980, na saudosa livraria Leitura, no Porto, e custou-me 250 escudos, ou seja, 1,25€. Os outros foram adquiridos posteriormente, em alfarrabistas.

A sexta edição, de 1956

Para não estar a aborrecê-lo(a) demasiadamente, prezado(a) leitor(a), nas minhas observações vou privilegiar a sexta edição, de 1956, do Novo atlas escolar português, em relação às demais.

Mapas físico e político de África (cartas 38 e 39), Novo atlas escolar português, 6.ª ed., 1956.

O atlas, na sua sexta edição, está dividido em três grandes secções: "História geral", "Geografia geral", "Portugal e ultramar português". A primeira secção é composta por dez mapas históricos que vão do Antigo Egito à Europa do século XX. A segunda secção é composta por 43 mapas, principalmente mapas físicos e políticos de todo o globo, mas também mapas temáticos (clima, grandes vias de comunicação, economia, demografia) e cosmografia. Da terceira secção fazem parte onze mapas de Portugal e das suas possessões ultramarinas, com pormenores relativos à demografia, economia, mineralogia, etc.

Império romano (carta 6), Novo atlas escolar português, 6.ª ed., 1956.

Muito interessante é o facto de, para além das cartas, o atlas ser amplamente ilustrado com abundantes fotografias a preto e branco dos diversos locais do globo. Numa época em que ainda não se tinham iniciado as emissões regulares de televisão em Portugal e em que a difusão de imagens de locais distantes do planeta era rara, o facto deste atlas estar amplamente ilustrado deveria constituir um grande atrativo para os jovens estudantes de então.

Mas as primeiras edições do atlas não eram ilustradas. Isso foi uma melhoria posterior que se foi mantendo até à décima edição, de 1965. No prefácio da décima primeira edição, de 1971, refere-se que "a documentação fotográfica, embora a consideramos elemento importante na valorização de uma obra deste género, pareceu-nos desatualizada, pelo que, na impossibilidade de a substituirmos no imediato, resolvemos suprimi-la. É nossa intenção, porém, modernizá-la e publicá-la em futuras edições". Que, infelizmente, nunca chegaram a ver a luz do dia...

Pormenor do mapa administrativo de Portugal (carta 54-55), Novo atlas escolar português, 6.ª ed., 1956. Para um bom observador, surpreende a abundância de topónimos com ortografia antiquada e/ou errada: Pôrto, Matozinhos, Souza (rio), Sitânia, Guimarãis, Famalição, Celórico. E, se é verdade que os dois primeiros foram corrigidos em edições posteriores, os restantes permaneceram errados até à última edição.

Apesar do alegado esforço para apresentar ao público escolar nacional um atlas português, a verdade é que, na sexta edição, ainda vemos, aqui e ali, topónimos na sua forma inglesa – Guyana, Iraq, Kenya, Thailand, Vietnam, entre outros – e muitos mais em português do Brasil (na ortografia brasileira da época) – Boêmia, Copenhague, Coréia, Egito, Gôa, Goenlândia, Gôlfo da Guiné, Iugoslávia, João Pessôa, Macedônia, Moscou, Serra da Estrêla, Tchecoslováquia, etc. A interferência do italiano também é percetível, nomeadamente nas legendas de algumas fotografias. Por exemplo, a designação de "indiano" é usada na legenda de uma fotografia de um nativo americano, quando a designação portuguesa corrente seria "índio". Mais à frente, uma imagem de uma cidade germânica ostenta a legenda "Mónaco: Panorama", equívoco provocado pelo facto de a cidade alemã que nós conhecemos como Munique, em italiano ser designada como Monaco di Baviera. Ou ainda, uma vista do palácio real de Budapeste legendada como "Budapeste: a Reggia"!

Decadência dos atlas escolares

A partir de meados da década de 1970, o ensino da geografia em Portugal sofreu uma transformação radical, com a memorização de lugares a ser preterida em favor do estudo de temas de caráter social: a população, as cidades, as atividades humanas. Pela mesma altura, no nosso país vivia-se um período ímpar de transformação. Punha-se termo a um regime totalitário, descobria-se a liberdade e a democracia, empreendia-se um processo acelerado e atabalhoado de descolonização, recebiam-se centenas de milhares de nossos compatriotas em fuga das antigas possessões ultramarinas, etc. Tudo estava em mudança!

Eu próprio vivi estas alterações na primeira pessoa quando estava no final da escola primária. No período imediatamente a seguir ao 25 de Abril, recordo-me que o programa escolar foi repentinamente encurtado, já que tudo o que dissesse respeito às, então chamadas, províncias ultramarinas foi prontamente eliminado. Lembro-me que só usamos uma parte do livro de Ciências Geográfico-Naturais. Na minha escola, as professoras de algumas salas deram instruções para que as folhas do livro dedicadas às colónias fossem arrancadas ou recortadas, outras que essas folhas fossem coladas. No meu caso, limitei-me a traçar todas essas páginas onde se explanava a matéria que, repentinamente, se tinha tornado dispensável.

Mas o grave foi que o vazio deixado pela eliminação da informação sobre as províncias ultramarinas – que, então, se estavam a tornar nações independentes – não foi preenchido por um estudo mais aprofundado do território metropolitano e ilhas adjacentes. Ou, como a plena integração na Europa nos foi apresentada, sem hesitação, como o novo desígnio nacional, poder-se-ia esperar que se passasse a dar especial atenção ao conhecimento da geografia do Velho Continente. Mas nada disso aconteceu!

Deixámos de conhecer o curso do Limpopo, do Cunene ou do Mandovi, mas também nada mais aprendemos sobre os rios portugueses. Na verdade, no meu tempo de primária, já não era necessário mais do que saber enumerar e apontar no mapa o curso de cinco rios: o Minho, o Douro, o Mondego, o Tejo e o Guadiana. Todos os outros já então eram ignorados. O mesmo em relação às serras que, se a memória não me falha, o programa oficial apenas reconhecia as seguintes: Gerês, Marão, Montemuro, Caramulo e Estrela. E, em relação à Europa, ainda menos se aprendia. Se era assim em meados da década de 1970, suponho que a situação não se tenha alterado para melhor desde então...

Acha que não, caro(a) leitor(a)? Diga-me uma coisa: quantos portugueses – que não sejam geógrafos – sabem onde nasce o Danúbio, onde desagua o Vístula ou o nome de uma cidade importante banhada pelo Ródano? Sem ir a correr ao Google, certamente que muito poucos... Mesmo os que estão munidos de pós-graduações, mestrados e doutoramentos!

Por conseguinte, não é de estranhar que, em Portugal, desde há 50 anos que pura e simplesmente deixaram de ser publicados atlas escolares, o que é caso raríssimo no contexto internacional. Mesmo em países que nos habituamos a considerar menos desenvolvidos – por exemplo, Angola e Moçambique –, houve (e continua a haver) uma preocupação em dotar os jovens em idade de escolar de ferramentas que os ajudem a conhecer o seu lugar no mundo.

Esse desinteresse nacional pela geografia é patente em todo o lado, designadamente na televisão, onde os mapas que nos são apresentados ostentam sistematicamente erros grosseiros.

Bandeira da União Europeia sobreposta a um mapa usado pelo Jornal da Tarde, da RTP, com erros grosseiros: inclui a Grã-Bretanha, mas esquece-se da Irlanda; representa a península arábica, mas ignora todo o Norte de África; omite a totalidade das ilhas do Mediterrâneo: Creta, a Sicília, a Sardenha, a Córsega, as Baleares...

Já sei que, muito provavelmente, o(a) arguto(a) leitor(a) estará a pensar que, hoje em dia, com a facilidade que temos em recorrer ao Google Maps, consultar um mapa ou um atlas em papel torna-se um ritual que tanto tem de obsoleto como de inútil.

E, se calhar, até tem razão. Mas sabia que o recurso sistemático a essas ferramentas diminui o seu sentido de orientação? Você pode conseguir seguir escrupulosamente o caminho que o Google Maps lhe vai indicando passo a passo – "vire na próxima à esquerda", "siga sempre em frente", etc., – mas, provavelmente, vai sentir dificuldade em se localizar na planta de uma cidade, por exemplo. Bem, resta-nos esperar que as ferramentas eletrónicas nunca nos falhem...

Ficha técnica

  • Título: Novo atlas escolar português: histórico-geográfico
  • Autor: João Soares (1878-1970)
  • Data: 1925
  • Edição: 1.ª
  • Idioma: português
  • Local: Lisboa
  • Editor: Livraria Sá da Costa - Editora
  • Páginas: 64 mapas, 26 pp. de índices
  • Dimensões: 342 x 270 x 15 mm

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