The World Atlas – Atlas Mira, 1967

The World Atlas – o nome do atlas que hoje lhe trago pode ser enganador. Não, não se trata de um atlas americano, caro(a) leitor(a). Também não é uma publicação britânica. A pista está no brasão de armas em relevo que a capa do atlas ostenta…

Pois é, é mesmo o emblema da URSS, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, de seu nome completo. Estamos perante a edição internacional, em inglês – daí o título The World Atlas –, de um famoso atlas que, no original, se chamava Атлас Mира (no alfabeto latino: Atlas Mira) e que, literalmente, significa "Atlas do Mundo", publicado em 1967.

Mas, para entendermos o porquê de se ter publicado em Moscovo um atlas em inglês, temos de recuar no tempo.

É bem verdade que no período czarista já havia atlas produzidos na Rússia. O mais famoso deles foi o Атласъ Маркса (Atlas Marksa) editado em São Petersburgo em 1905. Contou com mais duas edições, em 1910 e 1917. No entanto, este atlas não era mais do que a versão russa do germânico Neuer Handatlas, da editora Wagner & Debes, de Leipzig.

Só alguns anos após o triunfo do bolchevismo e da instauração da URSS é que – por iniciativa do Estado – se deu início a um projeto cartográfico visando dotar o país de um grande atlas, elaborado com meios próprios e ajustado aos novos tempos.

O Bolshoi Sovetskii Atlas Mira de 1937 e 1940

Recorrendo a alguns dos geógrafos e cartógrafos soviéticos mais competentes da época, foi desenvolvido um aturado trabalho de análise crítica de cartas nacionais e estrangeiras da qual resultaram os fundamentos científicos e metodológicos que serviram de base à realização de um grande atlas, a que se deu, precisamente, o nome de Bolshoi Sovetskii Atlas Mira (em português: Grande Atlas Mundial Soviético). Seria obra a ser publicada em três volumes: o primeiro, com mapas gerais de todo o mundo; o segundo, inteiramente dedicado à URSS; e o terceiro, sobre os restantes países do mundo.

O primeiro volume saiu do prelo em 1937, coincidindo com o 20.º aniversário da Revolução de Outubro. A obra abrange todo o globo, com mapas físicos, socioeconómicos, políticos e históricos. Uma secção inicial, que inclui mapas-múndi, polares e oceânicos, é seguida de mapas sobre a densidade populacional, as nações do mundo, os grupos nacionais, povos e tribos, a indústria, a agricultura, as rotas comerciais, os recursos naturais, os mercados de exportação e outras atividades económicas, as divisões políticas e históricas do mundo e mapas ilustrativos das fases da Primeira Guerra Mundial. Há, ainda, cartas sobre astronomia, geologia, recursos minerais, geomorfologia, clima, solos, vegetação, zoologia, explorações e descobertas. 

A obra recebeu os mais altos elogios de geógrafos e cartógrafos de vários países. Na Exposição Universal, realizada em Paris em 1937 – de seu nome oficial: Exposition internationale des arts et des techniques appliqués à la vie moderne –, o primeiro volume do atlas foi premiado com um Grande Prémio e considerado uma importante conquista da ciência e da tecnologia geográficas e cartográficas soviéticas.

Três anos depois, era a vez do segundo volume do atlas ver a luz do dia. Estávamos em 1940, já a Segunda Guerra Mundial grassava em grande parte da Europa. No entanto, mercê do tratado de não agressão germano-soviético, mais conhecido como o Pacto Molotov-Ribbentrop, o País dos Sovietes vivia ainda em paz.

Este segundo volume é inteiramente dedicado à URSS. Predominaram mapas pormenorizados dos grandes centros industriais, bem como mapas político-administrativos de toda a URSS, com especial incidência na República Socialista Federativa Soviética da Rússia, na República Socialista Soviética da Ucrânia e na República Socialista Soviética da Bielorrússia. Os mapas da densidade populacional foram baseados nos censos de 1939. Uma série de mapas retratam, também, a Guerra Civil Russa (1917-1923). Mapas geográficos gerais mostram rios, lagos, mares, cidades, aldeias, estradas, relevo e outros elementos paisagísticos. Enquanto os mapas económicos mostravam a indústria, a agricultura, a energia, os recursos minerais e os transportes. Tudo com bastante rigor e exatidão.

Região de Bengala, com o delta dos rios Ganges, Bramaputra e afluentes, destacando-se o Paquistão Oriental. Em 1971, este território separar-se-ia do Paquistão, passando a designar-se por Bangladesh. Excerto da carta "North India, Nepal, East Pakistan", The World Atlas, 1967, p. 138.

Demasiado bom?

Ironicamente, terá sido a precisão cartográfica do segundo volume do Bolshoi Sovetskii Atlas Mira que acabou por condená-lo...

Apesar dos compromissos assumidos, em junho de 1941, os exércitos germânicos irromperam pela União Soviética, somando êxitos sucessivos e fulgurantes. O Exército Vermelho, apesar dos avisos provenientes de várias fontes, foi apanhado de surpresa, sofrendo sérios reveses e perdas humanas colossais.

Perante tal descalabro, sob o pulso de ferro de Josef Estaline (1878-1953)o regime teve necessidade de, rapidamente, encontrar culpados. E, entre os vários bodes expiatórios identificados, estavam – surpreendentemente – os mapas e os atlas.

A propaganda estalinista fez circular rumores segundo os quais, nas vésperas da guerra, representações diplomáticas estrangeiras (especialmente alemãs) tinham comprado centenas de mapas e atlas soviéticos, especialmente o segundo volume do Bolshoi Sovetskii Atlas Mira. Afirmou-se que tais mapas teriam sido cruciais para a identificação das infraestruturas e dos complexos industriais soviéticos bombardeados pelos invasores.

As consequências não se fizeram esperar. Todos os mapas e plantas em grande escala de Moscovo e do seu oblast foram proibidos de circular livremente. Os exemplares existentes foram retirados das salas de mapas das bibliotecas públicas e, muitos deles, queimados. Os mapas temáticos do segundo volume do Bolshoi Sovetskii Atlas Mira foram recortados de todos os exemplares que foi possível apreender, ao ponto de poucos exemplares completos desta obra terem chegado aos nossos dias.

Além disso, passaram a ser proibidos todos e quaisquer mapas com o mínimo de informação que pudesse ser considerada sensível. Esta desconfiança paranoica em relação a um possível aproveitamento da qualidade dos mapas por potências hostis deixou marcas profundas na mentalidade das autoridades dos países comunistas.

Aliás, o(a) sempre atento(a) leitor(a) deverá estar recordado(a) do artigo que escrevi sobre um atlas publicado em 1975 – o Atlas für Motortouristik der DDR – na, então, República Democrática Alemã e que, como era prática corrente nos países do Leste Europeu, era pródigo em omissões grosseiras e erros propositados, precisamente para enganar um potencial invasor. Um invasor que, acrescente-se, nunca surgiu. Entretanto, gerações de alemães de leste  os grandes utilizadores destes produtos  habituaram-se a não confiar nos mapas do seu próprio país...

Mas, voltando ao Bolshoi Sovetskii Atlas Mira, a verdade é que a publicação não foi além dos dois primeiros volumes. O terceiro volume da obra, que era suposto abranger os restantes países do mundo, para além da URSS, nunca chegou a ver a luz do dia. Os trabalhos foram interrompidos com a invasão alemã e nunca foram retomados.

Mapas das regiões urbanas de Madrid, "Barselona" (certamente uma gralha na passagem do alfabeto cirílico para o latino), Lisboa e estreito de Gibraltar. Excerto da carta "Portugal and Spain", The World Atlas, 1967, p. 72.

O Atlas Mira de 1954

O fim da Grande Guerra Patriótica – como a Segunda Guerra Mundial é conhecida na Rússia – e a relativa estabilidade do país, propiciou a publicação de um novo atlas – agora chamado, simplesmente, Atlas Mira (ou seja, Atlas do Mundo) –, com a primeira edição a ser publicada em 1954.

Este atlas era constituído por dois volumes, sendo que o segundo de pequeno formato, contendo apenas o índice geográfico. O volume do atlas, propriamente dito, tem 283 páginas: os mapas do mundo ocupam cinco páginas, três páginas para mapas históricos, 76 páginas com mapas da União Soviética e 53 páginas com mapas da Europa. A parte não soviética da Ásia – curiosamente designada por “Ásia estrangeira” – cobre 53 páginas, a África, dezoito páginas, as Américas, 57 e a Oceania, doze. No final, há seis páginas com mapas do oceano Atlântico, do mar Mediterrâneo e das regiões polares.

A maioria das secções começa com um mapa físico – com linhas de contorno e coloração hipsométrica –, seguido de um mapa político e de um mapa das vias das comunicações da região em questão. O restante de cada secção consiste em mapas físicos numa escala maior, com o relevo representado através de sombreamento. Na secção sobre a União Soviética, cada república tem um mapa com a sua subdivisão administrativa.

Pesando quase sete quilos, o atlas tem um tamanho considerável, sendo que muitas regiões estão representadas em detalhe, frequentemente à escala de 1:5.000.000, 1:2.500.000 ou 1:1.250.000. Isto acontece principalmente nos mapas da própria União Soviética e dos “estados amigos” – Europa de Leste, China – mas também nos da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. A representação cartográfica da Alemanha é curiosa: mostra os quatro setores de ocupação pós-Segunda Guerra – o soviético, o norte-americano, o britânico e o francês – com fronteiras nacionais entre si, como se fossem quatro países separados.

As grandes metrópoles urbanas do mundo são objeto de mapas próprios à escala 1:250.000. Curiosamente, tal não acontece em relação às grandes cidades da União Soviética, da Europa de Leste e da China. Muito provavelmente devido ao tal temor  bem mais imaginário do que real  de que pudessem ser usados para uma invasão...

Mapa da cidade-estado de Singapura. Foi possessão britânica até 1959, esteve integrada numa federação com a Malásia, tornando-se um república independente em 1965. Excerto da carta "Indochina", The World Atlas, 1967, p. 133.

A segunda edição do Atlas Mira, também em inglês – The World Atlas –, de 1967

Nova edição do Atlas Mira foi publicada em Moscovo em 1967 pela Direção-Geral de Geodesia e Cartografia do Conselho de Ministros da URSS. E – grande novidade! – foi publicada simultaneamente uma edição em russo e outra em inglês, intituladas Atlas Mira e The World Atlas, respetivamente.

Foram impressas 25 mil cópias de cada versão, com um preço de venda ao público de 42 rublos por exemplar. O que era bastante, se considerarmos que, na época, o salário mensal médio na URSS não chegava aos 100 rublos. Seria como, transpondo para o Portugal de 2024, um atlas nos custasse 588 euros. Um preço proibitivo, não lhe parece, caro(a) leitor(a)? Mas, mesmo assim, muitos soviéticos acharam que valia o esforço e adquiriram-no.

Carta "Australia and Oceania", The World Atlas, 1967, pp. 233-234.

A nova versão do Atlas Mira é um pouco menos volumosa do que a edição anterior, mede 51 cm de altura por 33,2 cm de largura, pesa 5,1 quilos e tem 250 páginas completas de mapas. O índice, que constitui um livro separado, tem cerca de 200 mil entradas.

A minha análise aqui incide apenas sobre a versão do atlas em inglês, porque é este o exemplar que eu tenho.

Logo na primeira página do atlas, surge-nos a efígie de Lenine e a inscrição, em inglês, «Dedicado ao Quinquagésimo Aniversário da Grande Revolução Socialista de Outubro. 1917-1967».

Um aspeto curioso é que, apesar dos mapas do atlas estarem exclusivamente escritos em inglês, as páginas de informação estão, para além do inglês, também em espanhol – talvez a pensar em Cuba e noutros países da América Latina. Em bom rigor, até se passa o contrário: primeiro surge-nos uma página com uma dada informação em espanhol, seguida da mesma informação em inglês, na página seguinte.

Assim, a primeira página com o título da obra, apresenta-a como «Atlas del Mundo, segunda edición, Moscú 1967», seguindo a mesma informação, na página seguinte, em inglês. O mesmo se passa com o prefácio, onde se explicam as melhorias que a segunda edição apresenta em relação à primeira. Refere-se também que o número de mapas da União Soviética foi reduzido em relação à edição anterior, em virtude da publicação de um atlas inteiramente dedicado à URSS. E acrescenta-se que «A primeira edição do Atlas do Mundo teve muita divulgação fora do país, mas os leitores estrangeiros tinham grandes dificuldades para utilizar o Atlas com caracteres russos. Atendendo aos desejos procedentes de distintos países, a segunda edição publica-se em duas séries: uma em russo e outra em caracteres latinos»  está, assim, explicado o porquê desta edição internacional.

Excerto da carta "North America, Communications", The World Atlas, 1967, p. 178.

Os mapas do The World Atlas estão organizados em secções começando com “Mapas do mundo”, seguindo-se a URSS – que é tratada como se de um continente separado se tratasse, com os seus próprios mapas físicos, políticos, de transportes e fusos horários –, depois a “Europa Ocidental” – que, neste caso, significa toda a Europa que não faz parte da União Soviética –, a seguir a Ásia, depois a África, a América do Norte, a América do Sul, terminando com “Austrália, Oceanos, Regiões Polares”.

Os mapas do mundo estão na escala 1:50.000.000. Para cada continente, há um mapa físico geral como introdução (1:10.000.000 a 1:25.000.000), seguido de mapas políticos e de vias de comunicações. Segue-se uma série de mapas regionais gerais (1:1.500.000 a 1:750.000) e suplementados, para as áreas mais importantes, por mapas de grande escala (1:250.000 a 1:750.000).

Muitos mapas estão em página dupla, com uma largura total de 63 cm. Alguns excedem mesmo essa largura, tendo uma badana que se desdobra, fazendo com que o mapa alcance os 85 cm. O verso da página da esquerda tem um esquema do mapa que se segue e das folhas adjacentes. Por regra, os mapas são impressos no verso das páginas da direita.

São usadas 18 cores diferentes, do azul escuro, para as profundezas do oceano, ao castanho escuro e ao branco, para as montanhas mais altas e os glaciares. Para delinear o relevo é usado o sombreamento junto com as linhas de contorno. A combinação de sombras e cores dão um bonito efeito visual de quase 3D.

Excerto da carta South America, North WestThe World Atlas, 1967, pp. 224-225.

Muitas das principais cidades do mundo são mostradas em mapas separados ou inserções, normalmente em escala 1:250.000, bem como áreas importantes como o canal do Panamá ou o estreito de Gibraltar, junto com mapas detalhados de pequenas ilhas espalhadas pelos oceanos do mundo.

“E como é que este atlas veio parar às suas mãos? – perguntará o(a) curioso(a) leitor(a).

Pois bem, comprei este exemplar do The World Atlas há cerca de cinco anos a um colecionador da Letónia. Ao que me explicou, o atlas tinha pertencido a um professor universitário. Na verdade, no verso da capa deste exemplar está a seguinte inscrição manuscrita em letão: Cátedra de Geografia Física.

Aquando da publicação deste atlas (1967), a Letónia integrava a URSS, como República Socialista Soviética da Letónia. Tendo pertencido à Rússia czarista, a Letónia tornou-se uma república independente em 1918, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial. Mas, em 1940, foi anexada pela URSS, só recuperando a sua independência em 1990. A Letónia é, hoje, membro da OCDE, da União Europeia e da Nato. No entanto, como herança do domínio soviético, os russos constituem cerca de 25% da população deste país báltico.

A falsificação cartográfica soviética

Na União Soviética, os mapas de grande escala foram sempre tratados como segredos de Estado, só estando disponíveis a um número limitado de agências governamentais. No entanto, talvez pelo alegado uso militar que terá sido dado pelos alemães aos mapas e atlas soviéticos de utilização civil, o facto é que, aos poucos, todos os mapas publicados começaram a apresentar um número crescente de “erros”.

Na verdade, as primeiras falsificações eram subtis e foram, no Ocidente, interpretadas como pequenos lapsos devidos à generalização cartográfica ou aos métodos de representação do relevo. Alguns cartógrafos ocidentais chegaram mesmo a acreditar serem o resultado de novos e mais rigorosos levantamentos topográficos. No entanto, quando estávamos perante localizações na parte europeia da URSS, há muito levantadas e que nunca tinham visto a sua localização questionada ao longo de décadas, começou a tornar-se claro para todos que havia ali uma intenção clara de falsificação.

E não há atlas em que tais falsificações sejam mais evidentes do que precisamente na edição de 1967 do Atlas Mira The World Atlas. Num artigo publicado em 1970 na revista norte-americana The Military Engineer (fonte) são referenciadas centenas de caminhos de ferro e estradas, cidades e aldeias, rios e ribeiros, montes e vales deslocados dos seus locais reais, alguns até 40 quilómetros, e outros pura e simplesmente omitidos dos mapas.

No mapa de Leningrado e arredores, por exemplo, diversos pontos foram sujeitos a uma deslocação rotacional e linear em relação ao paralelo 60 N de latitude e aos meridianos 30 E e 31 E de longitude, quando comparados do segundo volume do Bolshoi Sovetskii Atlas Mira, de 1940.

Outro caso flagrante é a cidade de Nével, na Rússia europeia, que fica nas margens do lago homónimo. Ora, como no The World Atlas o lago sofreu uma deslocação de 8 quilómetros em relação ao paralelo 56 N e ao meridiano 30 E, a cidade passou distar vários quilómetros do lago!

Se calhar – e para não assustar excessivamente o(a) paciente leitor(a) –, devo acrescentar que estas omissões e estes erros intencionais de que tenho falado se limitavam aos mapas da União Soviética e, eventualmente, aos dos países da Europa de Leste. A representação cartográfica do resto do mundo estava correta. Não quer dizer que, aqui e ali, não houvesse um ou outro erro ou lapso – há-os sempre –, mas não eram deliberados.

O lago Nével, que banha a cidade homónima, surge aqui significativamente deslocado para sul (comparar com Google Maps). Pormenor da carta "Byelorussian SSR, Lithuanian SSR, Latvian SSR, Estonian SSR and Kaliningrad Region of RSFSR", The World Atlas, 1967, p. 18.

Seja como for, as autoridades soviéticas sempre negaram qualquer distorção, enaltecendo a qualidade e a exatidão dos seus produtos cartográficos, apesar de, mesmo dentro da URSS, todos saberem que isso não era verdade.

Até que, em 1988, Viktor R. Yashchenko (n. 1935), diretor-geral dos Serviços Soviéticos de Geodesia e Cartografia, admitiu publicamente que, durante cinquenta anos, todos os mapas da URSS disponibilizados ao público haviam sido sistematicamente distorcidos, alegadamente por questões de segurança. No entanto, Yashchenko reconheceu o óbvio, que tal era um exercício fútil desde que passou a ser possível a países estrangeiros elaborarem mapas extremamente precisos usando imagens captadas por satélites. Por conseguinte, e integrado na política de Glasnost promovida pelo, então, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachov (1931-2022), todos os novos mapas do país a publicar passariam a ter a localização correta de todos os seus elementos.

O que é curioso é que, ao mesmo tempo que as autoridades soviéticas introduziam propositalmente milhares de erros nos mapas da URSS, investiam também enormes recursos a, secretamente, cartografar com grande precisão os restantes países do mundo.

Delta do rio das Pérolas, no sul da China. De notar o uso das designações chinesas das, então, possessões portuguesa de Macau e britânica de Hong Kong, aqui identificadas apenas como Aomen e Xianggang, respetivamente. Excerto da carta "China, Central and South", The World Atlas, 1967, p. 118.

Entre 1950 e 1990, o exército soviético conduziu um ambicioso programa de mapeamento topográfico, criando mapas precisos e em grande escala de praticamente todos os países do mundo. Não foram só minuciosamente cartografadas grandes metrópoles, como Nova Iorque, Tóquio e Londres, mas também cidades médias como o Porto, por exemplo. Os soviéticos reuniram sistematicamente informações como a localização das fábricas e dos portos, a altura dos edifícios, a largura das estradas e a capacidades das pontes. Alguns dos detalhes resultam do recurso à tecnologia de satélite, enquanto outros indiciam um reconhecimento no terreno, possivelmente feito através de informadores.

Este é um tema interessantíssimo, mas que extravasa o âmbito deste artigo... Todavia, se o(a) prezado(a) leitor(a) tiver interesse em saber mais, recomendo-lhe este livro: The Red Atlas: How the Soviet Union Secretly Mapped the World, de John Davies e Alexander J. Kent. Reúne centenas de excertos desses incríveis mapas do tempo da Guerra Fria, explicando a sua proveniência, as técnicas cartográficas usadas e as razões que terão levado os soviéticos a canalizarem tantos recursos para a realização desta empreitada.

Após a queda da União Soviética

Em 1999, já após a queda da União Soviética, o Serviço Federal de Geodesia e Cartografia da Rússia empenhou-se na publicação de uma terceira edição do Atlas Mira. O objetivo era fazer um atlas mundial para o século XXI, completamente revisto e atualizado, reunindo mapas e índice num volume. Livre das distorções do passado, este atlas inclui vistas panorâmicas muito detalhadas e mapas de grande qualidade, com um índice com 240 mil topónimos.

No entanto, duas décadas depois, com a militarização da Rússia, a invasão da Ucrânia e a degradação crescente das relações com o Ocidente, não sabemos se a Rússia irá voltar a recorrer à cartografia como arma nesta Guerra Fria 2.0. A ver vamos...

E é tudo de momento, caro(a) leitor(a)! Obrigado por me acompanhar.

Ficha técnica

  • Título: The World Atlas
  • Data: 1967
  • Edição: 2.ª
  • Idioma: inglês e espanhol
  • Local: Moscovo
  • Editor: Direção-Geral de Geodesia e Cartografia do Conselho de Ministros da URSS
  • Páginas: 250 pp. de mapas, 127 de vocabulário e índices
  • Dimensões: 510 x 332 x 50 mm

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