The Times Survey Atlas of the World, 1920
Ao longo do século XX, assistimos a uma crescente popularidade dos atlas mundiais nos países desenvolvidos. Por um lado, o ensino – incluindo o da geografia – foi-se estendendo a praticamente toda a população. Por outro, houve grandes acontecimentos políticos que adquiriam uma expressão internacional – as duas guerras mundiais, por exemplo – e, por fim, o desenvolvimento tecnológico da impressão cartográfica permitiu uma redução progressiva dos custos de produção. Na verdade, o atlas mundial tornou-se um dos produtos de maior sucesso comercial para as editoras e para as empresas de cartografia durante o século XX.
Entre os títulos mais significativos, duas publicações se destacam: o alemão Stielers Handatlas, de que já falámos, e o britânico The Times Atlas of the World, que vamos agora abordar.
Times, Sunday Times e Times New Roman
Comecemos pelo princípio: o jornal The Times.
O decano dos diários britânicos foi fundado em 1785 e, nas palavras do seu editor Tony Gallagher, «o Times é respeitado, credível, responsável, confiável e é parte essencial da herança cultural da nação» e, acrescentaria eu, granjeou um prestígio que se estendeu a todo o mundo.
The Times é um jornal diário, mas publica-se apenas de segunda a sábado. Aos domingos, é a vez do Sunday Times que tem uma tiragem que é o dobro da do Times. Durante muito tempo, Times e Sunday Times foram periódicos completamente independentes e só passaram a ser detidos pela mesma entidade em 1966. Mesmo assim, até hoje, os jornais têm equipas redatoriais separadas. Atualmente, ambos os títulos são detidos pelo magnata Rupert Murdoch.
Durante estes quase dois séculos e meio de existência, a notoriedade alcançada pelo Times foi tal que influenciou o nome de vários periódicos, um pouco por todo o mundo. Os casos mais conhecidos são, talvez, os do Financial Times e do New York Times, mas há muitos outros que, apesar de nada terem a ver com o Times original, têm Times no seu nome: Los Angeles Times, The Irish Times, The Times of Israel, The Times of India, The Manila Times... A lista é extensíssima. Há até um Portuguese Times, publicado em New Bedford (EUA). E não é só em inglês, mas também noutras línguas: El Tiempo (na Colômbia), Le Temps (em França, na Suíça, na Argélia, em Marrocos), Il Tempo (em Itália), O Tempo (no Brasil). Em Portugal, entre 1975 e 1990, houve um semanário chamado Tempo que o(a) leitor(a), se tiver uns 50 anos de idade ou mais, deve-se recordar.
Londres (carta n.º 25), The Times Survey Atlas of the World, 1920. Pormenor da zona central, Greenwich, West Ham e Woolwich. |
Se calhar, o(a) mui prezado(a) leitor(a) já sabia disto tudo. Mas uma coisa que talvez não saiba é que a conhecidíssima fonte tipográfica Times News Roman foi criada, em 1931, propositadamente para o jornal Times que a usou durante mais de quatro décadas. Mais recentemente foi popularizada pela Microsoft que, em várias versões do Windows, usou a Times News Roman como a tipografia por defeito em muitas aplicações informáticas, especialmente no processador de texto Word. Esta fonte tipográfica (ou outras, entretanto desenvolvidas a partir desta) é também a mais amplamente usada na publicação de livros em todo o mundo. Pelo menos nas línguas que usam o nosso alfabeto.
Regressando ao jornal: Sendo uma publicação de referência, em 1895, o Times decidiu publicar o seu próprio atlas mundial, a que chamou precisamente The Times Atlas of the Word. Apesar da designação de mundial, mais de metade das suas 117 páginas de mapas eram dedicadas à Europa. Mas este não era propriamente um atlas original. Em boa verdade, tratava-se de uma reimpressão do The Universal Atlas da Cassell & Co., de 1893, que, por sua vez, usava mapas em inglês impressos em Leipzig, Alemanha, desenhados para a segunda e terceira edições – de 1887 e 1893, respetivamente – do Andrees Allgemeiner Handatlas, publicado pela editora Velhagen & Klasing.
Mas esta foi apenas a primeira geração de atlas publicados pelo The Times. A versão subsequente resultou de uma longa e muito frutífera parceria, firmada em 1914, com o Instituto Geográfico de Edimburgo de John Bartholomew & Son e demorou quinze anos a ser preparada.
John Bartholomew & Son
Foi John Bartholomew, Senior (1805-1861) que, como gravador, desenvolveu alguns trabalhos notáveis – tais como o General Atlas de Black, em 1846 – e fundou a empresa. Mas foi o seu filho, John Bartholomew, Junior (1831-1893) e, principalmente, o seu neto, John George Bartholomew (1860-1920) que trouxeram grande notoriedade à empresa que, um tanto pomposamente, passou também a assumir a designação de Instituto Geográfico de Edimburgo.
O primeiro grande trabalho da empresa foi a produção do Atlas of Scotland (1895) para a Royal Scottish Geographical Society. Outro grande atlas de referência da Bartholomew foi o Citizen’s Atlas of the World que contou com dez edições, entre 1898 e 1952.
John Bartholomew Junior foi pioneiro no uso de matizes hipsométricas ou coloração de camadas em mapas com as terras baixas representadas em tons de verde e os terrenos mais altos em tons de castanho, depois roxo e finalmente branco.
O seu filho John George Bartholomew é tido como o responsável pela popularização do nome “Antártida” como a designação comum do continente mais meridional do mundo e pela adoção do vermelho ou do rosa para representar os territórios do Império Britânico nos mapas. Com J. G. Bartholomew, a empresa tornou-se a editora dos seus próprios trabalhos, em vez de uma produtora de mapas para outras instituições. Em 1910, J. G. recebeu do rei Jorge V – bisavô do atual monarca britânico Carlos III – um mandado real (royal warrant) nomeando-o “cartógrafo real”. Viveu os últimos anos da sua vida em Portugal, onde faleceu em 1920, sendo sepultado no cemitério de São Pedro de Penaferrim, em Sintra.
Sucedeu-lhe John Ian Bartholomew (1890-1962) que deu continuidade ao trabalho do pai no The Times Survey Atlas of the World e, mais tarde, supervisionou a Mid-Century Edition do Times Atlas of the World (1955-1960), de que falaremos um dia destes...
As gerações seguintes dos Bartholomew continuaram a honrar as tradições cartográficas da família. Em 1989, a empresa integrou a HarperCollins Publishers, como parte do conglomerado News International de Rupert Murdoch. Hoje em dia, a marca Bartholomew sobrevive como o nome comercial dos bancos de dados cartográficos da HarperCollins, com sede em Bishopbriggs, nos arredores de Glasgow.
The Times Survey Atlas of the World
Voltemos ao Times, caro(a) leitor(a). Pois bem, consciente de que o seu Atlas of the World, de 1895, estava a ficar ultrapassado, em 1914, a administração do jornal The Times convidou a Bartholomew a preparar um novo atlas mundial: The Times Survey Atlas & Gazetteer of the World. Com um índice geral de mais de duzentos mil topónimos, o atlas foi editado por J. G. Bartholomew e publicado originalmente em 37 fascículos quinzenais ao preço de 2s. 6d., ou seja, dois xelins e seis pence.
Xelins!? O que é isso? Como sei que o(a) fiel leitor(a) gosta particularmente destes pormenores, deixe-me lembrar-lhe que a adoção do sistema métrico decimal na libra esterlina só ocorreu em 1971, quando uma libra passou a dividir-se em 100 pence. Mas anteriormente, com o sistema imperial, as coisas eram um pouco mais complicadas. Então vejamos: até 1971, uma libra dividia-se em 20 xelins e cada xelim subdividia-se em 12 pence, sendo que seriam precisos 240 pence para fazer uma libra. Já sabermos que o símbolo da libra era (e é) “£”. Xelim era abreviado como “s.” e pence como “d.” A escolha destas letras vem das antigas moedas romanas solidus (soldo) e denarius (denário, dinheiro). Ou seja, cada fascículo custava o correspondente a menos de 1/3 de uma libra, o que, deduzo, fosse um preço aceitável para o cidadão médio britânico.
Sul de Itália (carta n.º 37), The Times Survey Atlas of the World, 1920. Pormenor da baía de Nápoles. |
Depois deste parêntese, regressemos ao atlas: como já referi, o processo de produção foi demorado – levou quinze anos – e altamente especializado. Notícias da época dão-nos conta de que não se olharam a despesas para conseguir um produto de primeira água. Os dados cartográficos mais recentes, obtidos através da rede internacional de agentes e correspondentes de Bartholomew, foram analisados e cruzados para se apurar a informação mais confiável e atualizada. A equipa editorial compilou essas informações e passou-as para o papel, na projeção e escala corretas para cada placa do atlas. Uma imagem espelhada de cada placa foi gravada em folha de cobre e, seguidamente, transferida para pedra litográfica que constituiu a placa de impressão real. Oito placas de impressão diferentes foram usadas para produzir cada página do atlas colorido.
“O atlas do Dr. [John George] Bartholomew é o triunfo supremo de uma vida dedicada à melhoria da cartografia e à disseminação de um interesse inteligente pela geografia”.
Scottish Geographical Magazine, 1920.
Folheando o atlas
A atlas começa com mapas gerais do mundo e uma série de mapas temáticos: clima, vegetação, população, “raças”, religiões, línguas, bem como das regiões polares.
Seguem-se os diversos continentes – Europa, Ásia, África, América e Oceania – exatamente nesta ordem. Cada secção começa com um mapa político geral do continente, antes de passar a outros mais pormenorizados. No geral, o atlas dá maior destaque aos países anglo-saxónicos ou de colonização britânica. Assim, na Europa, o maior destaque é dado às ilhas britânicas – o que não será de estranhar, visto que o atlas é britânico –, com sete mapas de pormenor à curiosa escala 1:633.600 e dois, de áreas urbanas, à escala 1:126.720. Falaremos sobre isto já a seguir…
Na secção da Ásia, é o Império das Índias – conhecido como o British Raj – que merece especial atenção. À época, integrava, não só a Índia atual, mas também o Paquistão, o Bangladesh, o Sri Lanka e Myanmar (Birmânia). Em África, o destaque vai para a Província do Cabo e o Transval (África do Sul). Na América, são as províncias mais povoadas do Canadá e os Estados Unidos a serem representados em mais detalhe. Na Oceania, tanto a Austrália como a Nova Zelândia são representadas com bastante pormenor.
Regresso à Europa para referir que os mapas espelham a realidade saída da Primeira Guerra Mundial, com os arranjos políticos que resultaram do Tratado de Versalhes. Vários países surgiram com o desmoronar do Império Austro-Húngaro – Checoslováquia, Hungria, Áustria – e do Império Russo – Polónia, Estónia, Letónia, Lituânia.
No que diz respeito ao nosso cantinho do continente europeu, a península ibérica está representada por dois mapas – secção ocidental e secção oriental – e por alguns mapas de certas áreas, nomeadamente da cidade do Porto e arredores.
A escala
Como referi acima, volto à questão da estranha escolha de escalas para representar as ilhas britânicas. Antes de mais, temos que recordar que é a escala que estabelece a relação de dimensões entre o desenho (neste caso, o mapa) e o objeto representado (a realidade).
Assim, se nós pegarmos num mapa de Portugal e, com uma régua, verificarmos que o Porto dista de Braga cinco centímetros, temos que consultar a escala para saber a que é que isso corresponde na realidade. Se o mapa tiver a escala 1:1.00.000, por exemplo, isto quer dizer que um centímetro no mapa corresponde a um milhão de centímetros na realidade. Ou seja, a dez quilómetros. Desta forma, ficamos a saber que cinco centímetros nesse mapa correspondem a cinquenta quilómetros. Será essa a distância real, em linha reta, entre o Porto e Braga.
Ora bem, se calhar o(a) estimado(a) leitor(a) nunca pensou nisso. Mas, em boa verdade, as escalas nos mapas estão sempre em centímetros. Isto é simples e prático para toda a gente, exceto para aqueles que vivem em países que não usam o chamado sistema métrico decimal. Tal era o caso do Reino Unido em 1920, onde as pessoas estavam acostumadas a medir as coisas em polegadas (em vez de centímetros) e as distâncias no terreno em milhas (em vez de quilómetros). Daí que, ao se optar pela escala 1:633.600 era o mesmo que dizer que cada polegada no mapa equivalia a dez milhas na realidade. Aliás, tal é mesmo indicado no mapa “Scale 1:633,600 or 10 Miles to an Inch”. Da mesma forma, nos mapas da Grande Londres e das outras cidades britânicas indica-se “Scale 1:126,720 or 2 Miles to an Inch”. Tal facilitava imensamente a vida aos britânicos, daí os editores terem optados por estas estranhas escalas.
É claro que a forma mais comum de contornar esta questão é o recurso à chamada escala gráfica: um segmento de reta, subdividido, no qual se inscrevem as distâncias reais correspondentes às dimensões do segmento de reta: em quilómetros, em milhas e/ou noutras unidades de medida, tais como léguas, nos mapas do século XIX.
Mudam-se os tempos…
Uma palavra final para dizer que, após a sua publicação em fascículos, em 1920, o The Times Survey Atlas of the World foi publicado em 1922, em conjunto com um segundo volume, o Index-Gazetteer, com 200 mil entradas. Durante cerca de três décadas, este foi o grande atlas de referência britânico e um dos melhores do mundo. No entanto, entre 1939 e 1945, um novo conflito mundial voltou a alterar a configuração geopolítica da Europa e foi desencadeando novas e profundas alterações, um pouco por todo o globo.
Atento às dinâmicas políticas e sociais do mundo, em meados do século XX, a administração do jornal The Times encomendaria à Bartholomew um novo atlas, seria o The Times Atlas of the World, Mid-century Edition, publicado em cinco volumes entre 1955 e 1960. Mas, sobre isso, falaremos numa próxima ocasião. Até à próxima, caro(a) leitor(a)!
Ficha técnica
- Título: The Times Survey Atlas of the World
- Data: 1920
- Idioma: inglês
- Local: Londres
- Editor: J.G. Bartholomew
- Páginas: 112 pp. de mapas
- Dimensões: 470 x 330 x 65 mm
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