Henri Pirenne, As cidades na Idade Média, 1962

Pirenne, H. (1962). As cidades na Idade Média: Ensaio de história económica e social. Lisboa: Publicações Europa-América, col. “Saber”, n.º 51, trad. Carlos Montenegro Miguel, 176 pp.

O livro que vos trago hoje é a primeira edição em língua portuguesa de uma importante obra da historiografia europeia, As cidades da Idade Média: Ensaio de história económica e social de Henri Pirenne. Ostentando na capa uma fotografia aérea da cidade occitana de Carcassonne, este livro foi impresso em 1962, com tradução de Carlos Montenegro Miguel, a partir do original em língua francesa. Editada pelas Publicações Europa-América, dentro da sua coleção Saber, n.º 51, a obra conheceu sucessivas reedições.

Historiador belga, Henri Pirenne (1862-1935) foi professor da Universidade de Gante, dedicando-se à história económica e social e sendo um dos pioneiros da história das mentalidades. As suas obras principais – Maomé e Carlos Magno e As cidades da Idade Média – deram origem a uma enorme polémica na historiografia europeia que se arrastou muito para além da morte do próprio autor.

O fecho do Mediterrâneo pelos muçulmanos

Contrariando a ideia generalizada de que a queda do Império Romano marcava o início da Idade Média, em Maomé e Carlos Magno (publicado postumamente em 1937, mas tendo por base um artigo do mesmo nome de 1922), Pirenne afirmou que os povos bárbaros acabaram por se romanizar, dando continuidade aos intercâmbios comerciais já existentes e mantendo o Mediterrâneo como via central de comércio. A verdadeira rutura ter-se-ia dado mais tarde, com a expansão muçulmana. A invasão muçulmana da península Ibérica, em 711, marcaria o verdadeiro início da Idade Média. Ao fechar o Mediterrâneo à navegação europeia, os muçulmanos teriam forçado a Europa marítima a transformar-se em Europa continental. A consequente retração comercial teria provocado uma retração urbana, objeto de análise em As cidades da Idade Média.

Resumidamente, em As cidades da Idade Média (publicado originalmente em francês, em 1927), Pirenne começou por reforçar a ideia da continuidade mercantil em torno do Mediterrâneo até o século VIII, ou seja, desde a Antiguidade até à Idade Média pré-carolíngia (capítulo I). Seria só no século IX que os muçulmanos fechariam o Mediterrâneo, ocorrendo a decadência comercial, levando a que o Império Carolíngio se tornasse terrestre e essencialmente agrícola (capítulo II). Tal tendência foi reforçada pelas invasões normandas, no final do século IX. Os burgos fortificados e as antigas civitas romanas, ficaram reduzidos a meras sedes episcopais, destituídos de uma população burguesa ou de uma organização municipal, atributos imprescindíveis da cidade (capítulo III). Mas eis que, no século XI, a partir de Veneza e da Flandres, pontos de contacto com o mundo oriental, se iniciou um renascimento comercial e urbano (capítulo IV). Os principais atores deste conjunto de mutações, os mercadores, constituídos fundamentalmente por indivíduos errantes e desenraizados, eram homens livres que escaparam ao poder senhorial que sobrecarregava os camponeses (capítulo V). Na sequência do renascimento do comércio, as cidades medievais desenvolveram-se a partir de núcleos pré-urbanos que proporcionavam segurança (capítulo VI). Em torno dos interesses da burguesia mercantil, foram criadas as instituições urbanas (capítulo VII). O renascimento das cidades assinalou o começo de uma nova era na história da Europa Ocidental, até então dominada apenas pelo clero e pela nobreza (capítulo VIII).

Apesar dos seus contributos significativas, algumas das teses centrais de Pirenne sobre a Idade Média não resistiram ao desenvolvimento posterior da historiografia. Vários autores contestaram que o comércio tivesse, de facto, decaído drasticamente no Ocidente após a invasão sarracena. Da mesma forma, também o tão proclamado hiato urbano não teria ocorrido de igual forma nas várias regiões da Europa, havendo casos de clara continuidade.

A problematização da história

Seja como for, mais importante do que a desadequação de algumas das suas respostas, Henri Pirenne trouxe dois grandes contributos: a problematização da história e a ampliação dos horizontes historiográficos. 

Henri Pirenne questionou os limites estreitos da historiografia política tradicional, ao formular novas perguntas, colocar novos problemas e lançar novos olhares sobre a história. Além disto, Pirenne foi pioneiro ao trazer a economia para o centro do cenário historiográfico, destacando a função económica da cidade medieval, valorizando o papel do mercado enquanto elemento de fixação urbana, analisando o papel dos grandes mercadores na vida urbana medieval e na transformação do mundo feudal. Por isso, não é de se estranhar que historiadores que formaram o movimento dos Annales – tais como Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel – tenham considerado Pirenne como um dos seus precursores.

Pirenne: um grande historiador, um grande escritor

Praticamente um século após a sua publicação original, vale a pena reler Henri Pirenne, quanto mais não seja porque estamos perante o exemplo de um grande historiador que foi também um grande escritor, possuidor de um estilo fluente, sedutor e, mesmo, literário.

Nos dias que correm, nos quais nos questionamos até que ponto os esforços de construção de uma unidade europeia poderão ser capazes de contrariar as forças que persistem em fragmentá-la – e.g., o Brexit – podemos mais facilmente perdoar Pirenne pelas suas generalizações – quiçá excessivas – sobre o início da Idade Média, o desenvolvimento das cidades europeias e o renascimento comercial. Historiador belga, Henri Pirenne ousou erguer a sua visão para lá dos limites nacionais, afirmando-se como um verdadeiro historiador europeu e um historiador para o mundo.

Por tudo isso, vale a pena voltar a Henri Pirenne.

Ficha técnica

  • Título: As cidades na Idade Média: Ensaio de história económica e social
  • Autor: Henri Pirenne
  • Edição: 1962
  • Idioma: português
  • Tradutor: Carlos Montenegro Miguel
  • Editor: Publicações Europa-América
  • Local: Lisboa
  • Encadernação: capa mole
  • Páginas: 176
  • Dimensões: 180 x 120 mm
  • Coleção: Saber
  • Estado de conservação: Exemplar estimado; miolo limpo.
Gostou deste artigo? Então, leia também:

Comentários

Mensagens populares deste blogue

The World Atlas – Atlas Mira, 1967

DGEMN, Paço dos Duques de Bragança, Guimarães, 1960

Indicadôr de utilidade pública: Pôrto, 1939